Era
o ano de 1948. A cena recifense fluía. Capibaribe afora...
Um Capibaribe cheio de vida, que refletia em suas águas
uma febre: febre de talentos, que assolava a província.
Nas ruas, nos becos, nas calçadas... atravessando as
pontes, ecoando pelas praças, nos sobrados, pelas esquinas...
Em prosa, em verso, em discursos , o canto dos jovens poetas,
as vozes dos literatos; os esboços e as pinceladas dos
artistas plásticos, os escritos dos jornalistas e intelectuais
delineavam novos rumos e imprimiam novas formas de ver, de interpretar
e de pensar a realidade...
A brisa, molhada de rio e de mar, sutilmente espalhava o pólen,
germinando inesquecível safra de movimentos artísticos
e culturais que marcaram época. Notável representação
de Pernambuco no cenário nacional e internacional: Aloísio
Magalhães, Cícero Dias, Reynaldo Fonseca, Abelardo
da Hora, Augusto Reinaldo, Francisco Brennand, Hélio
Feijó, Mauro Motta, Carlos Penna Filho, Audálio
Alves, só para citar alguns, entre muitos outros nomes.
Então, sob os céus do Recife, mobilizando olhares
e atenções, aparece com brilho invulgar uma jovem
poetisa, escritora, desenhista, pintora e jornalista.
O impacto de sua chegada agitou o espaço, e os ânimos:
Ladjane, original, única! Os recifenses custavam a crer
no que seus olhos estavam vendo!... Seria uma miragem? uma ilusão?
puro fruto de um delírio coletivo? É o que traduz
uma das manchetes dos jornais da época: “JURAMOS
POR DEUS QUE LADJANE EXISTE!”, na primeira página
do “Jornal Pequeno”, “órgão
independente e noticioso” , fundado por Thomé Gibson
; entre as fotos da artista com seus desenhos e telas, uma reportagem
de Guerra de Hollanda; a edição, de 14 de AGOSTO
DE 1948 .
A radiante presença de Ladjane, o magnetismo de seus
trabalhos e a potencialidade de sua criação encantavam
a cidade merecendo elogios, entre os quais o de Cícero
Dias, citado na mesma reportagem: “Em nenhuma pintora
nascente vi uma tão grande manifestação
de personalidade, de segurança e firmeza nas cores e
nas formas”.
Maria
Ladjane Bandeira de Lira nasceu em Nazaré da Mata , aos
05 de Junho de 1927, de João Vieira de Lira e Isith Bandeira
de Lira, sendo avós paternos Bernardino Vieira de Lira
e Ana Pereira de Lira, e, maternos, Francisco Cadena Bandeira
de Melo e Ana Carolina Cavalcanti de Albuquerque Wanderley Bandeira
de Melo.
Exercendo
magistério em Nazaré da Mata, e vindo ao Recife
fazer um estágio pedagógico, teve a oportunidade
de ir à exposição do escultor Abelardo
da Hora, entrando em contato com este e também com o
artista plástico e arquiteto Hélio Feijó,
assim tendo oportunidade de entrar em contato com os trabalhos
que ambos tinham começado a desenvolver na nascente e
memorável Sociedade de Arte Moderna do Recife, entre
maio e junho daquele inesquecível 1948.
Sob o seu patrocínio, Ladjane faria sua primeira exposição
no final daquele ano, no dia 12 de dezembro, integrada às
atividades da Sociedade no famoso atelier da rua da Imperatriz,
conforme registram os jornais da época, entre outros,
o “Diário de Pernambuco” de 23/ Agosto/48
e “O Popular”, de 19/Setembro/48. Essa exposição
aconteceu na Faculdade de Direito do Recife, onde antes haviam
exposto Cícero Dias e Lula Cardoso Ayres. Assim, Ladjane,
explodindo em intensa vitalidade criativa, revelou-se ao Recife
que viu nela nascer uma fulgurante carreira.
No
dia 11 de Agosto de 1987, em entrevista a mim concedida, a artista
fala de fatos importantes de sua história de vida, de
sua infância e adolescência em sua cidade natal:
Aos cinco anos de idade entrei para o Colégio Sta. Cristina,
das Damas da Instrução Cristã, lá
em Nazaré da Mata, onde fiquei até concluir meu
curso pedagógico, em 04/12/44. A seguir, comecei a lecionar,
neste mesmo Colégio, e também no Colégio
de S..José, do Pe. João Motta, irmão do
poeta Mauro Motta. Eu lecionava Desenho, mas mesmo antes da
conclusão do meu curso já o fazia, nas escolas
do Município, isso desde os meus quinze anos.
Ladjane cita então o nome de seu avô paterno, BernardinoVieira
de Lira, de quem fala com muita admiração:
Ele foi o fundador da “Banda Euterpina Juvenil de Nazaré
da Mata”, e é nome de uma das ruas da cidade; era
um homem de grande sensibilidade e imaginação,
tendo inclusive recebido referências em crônicas
de Mauro Motta, que, quando criança e adolescente, o
conheceu. Era também inventivo e progressista, foi o
primeiro a aparecer com automóvel em Nazaré.
Ao
lembrar esses detalhes, sua fisionomia iluminou-se, e, com especial
carinho, falou em sua avó, esposa dele, Ana Pereira de
Lira:
Ela
foi uma mulher forte, que tomou as rédeas da família
após o falecimento dele, e viveu lúcida e útil
até os 96 anos... E por isso eu resolvi ser como ela.
Na
mesma oportunidade, a artista sublinha a importância que
teve em sua formação o Pe. Daniel Lima, poeta
e filósofo respeitado em Pernambuco :
Foi
através dele que publiquei meus primeiros escritos, na
“Gazeta de Nazaré”, da qual era diretor.
Ele também me orientava nos estudos filosóficos,
e a ele devo, além de minha paixão pela Filosofia,
meu profundo interesse e preocupação com o ser
humano em extensão, assim como uma profunda reflexão
sobre mim mesma, e sobre o universo.
Mas
Ladjane recorda que já aos dez anos colaborava com o
“Fides Intrepida”, o jornal do Colégio, onde
apareceram seus primeiros versos. Sonhava então juntá-los
em um livro, o que só aconteceu em 1957, quando publicou
“Cantigas”, e continua:
Desenhar, sempre desenhei, desde muito nova; minha mãe
diz que, quando chorava, me dava um lápis e papel, e
eu me consolava garatujando. No colégio, meu professor
de Ciências, o Dr. Aristides de Paula, pedia-me para ilustrar
suas aulas com ampliações de células, óvulos,
espermatozóides, fetos... E penso que isso muito influenciou
o meu grande interesse pelas Ciências Físicas e
Biológicas, e o meu desejo de ser cientista, e pesquisadora.
A
artista comenta que, apesar das muitas atividades que tinha
em Nazaré, almejava buscar um ambiente onde pudesse concretizar
suas tendências artísticas, literárias e
plásticas, e nelas se realizar.
Em
1947, veio ao Recife, e mostrou seus poemas ao Dr. Esmeragdo
Marroquin, na época diretor do Jornal do Commercio, que
passou a publicá-los no suplemento literário dominical.
Logo depois, outros jornais (Diário da Noite, Diário
de Pernambuco, Folha da Manhã, Jornal Pequeno) também
passaram a publicar trabalhos seus. Quando, no ano seguinte,
definitivamente, para aí se transferiu, tornou-se ilustradora,
não só de suplementos literários dos jornais
locais, como também de livros de poesias de vários
autores, e também do primeiro Salão de Poesia,
realizado no Recife, em 22 de setembro de 1948. Os anos subseqüentes,
49 e 50, foram de intensa atividade, e, em 51, obteve o primeiro
prêmio do Salão de Pintura do Estado. Em 1952,
inicia no “Diário da Noite” a página
“Arte”, que, em 55, vai para o Jornal do Commercio,
onde permaneceu sob sua direção exclusiva até
a década de 80.
Ladjane desempenhou intensa atividade poética, literária
e jornalística, e também promoveu o movimento
artístico e cultural da cidade. Paralelamente, produzia:
desenhava, fazia gravuras, pintava. Enumerar todos os acontecimentos
que tiveram sua participação direta ou indireta,
e os trabalhos que realizou, exigiria uma longa resenha. Sua
produção, como sabemos, foi diversificada, e seu
talento criativo, fonte perene em sua vida.
Em 1964, foi encenada uma peça teatral de sua autoria,“A
viola do Diabo”, sob a direção de Alfredo
de Oliveira, na época com muita repercussão e
sucesso, tendo sido premiada com o “SAMUEL”, troféu
oferecido pela associação dos cronistas Teatrais
de Pernambuco, e também com o prêmio “Vânia
Souto Carvalho”. A peça foi
encenada no Teatro de Arena, e depois no Sta. Isabel, tendo
sido bastante comentada, inclusive pela crônica teatral
do Rio de Janeiro, conforme atestam edições do
Globo e do Jornal do Brasil da época.
Ainda,
em 65, participa de Coletiva no Museu de Arte de S.Paulo, dirigida
pelo prof. Bardi, e faz uma individual na Galeria Schultz, naquela
cidade. Em 1966, vai aos Estados Unidos, onde pronuncia palestra
sobre arte brasileira na Universidade de Stanford (Palo Alto,
California), e realiza uma individual na Galeria Internazionalle,
em N.Y. , assim como também participa de uma Coletiva,
na mesma galeria, entre artistas de renome mundial como Izacyro,
Archipenko, Zadkine, Picasso, entre outros.
De
1970 a 1980, Ladjane dedicou-se com exclusividade à criação
de uma obra notável, que chamou de “Biopaisagem”.
Segundo ela própria afirma, em entrevista a mim concedida
em 07 /outubro/ 87, há esboços dessa criação
desde 1960, quando embrionariamente já a executava. Disse
também que escreveu e refletiu muito sobre esse seu trabalho,
e afirma que, em etapas subseqüentes de seu fazer artístico,
sente uma continuação dele. No dizer da autora,
essa composição (em duas séries, a óleo
sobre tela e a bico-de-pena sobre papel), em estilo por ela
denominado “ Figurativista Mágico”, consolida
a busca do vir-a-ser, algo em infinito processo, onde a idéia
é a “unificação do conhecimento perfeito
, em busca da permanência unitária cognoscente”.
No
âmbito de sua vasta obra plástica, a Biopaisagem,
particularmente, impressionou-me. Contemplando-a pela primeira
vez, senti o impacto de uma comoção . Diante da
magnitude expressiva, a preciosidade da obra. A série
representa a Metamorfose.
A
óleo sobre tela eclode em cores a metamorfose humano-vegetal,
amplo tema presente na Mitologia Grega, cantado por Ovídio
- poeta latino (43 a. C. –17 d.C. ), em sua obra “As
Metamorfoses”, Livro I (Apolo e Daphne, vv. 450-565),
e Livro II (as Heliades, vv. 305-365)- e também presente
em esculturas, altos-relevos, mosaicos, afrescos, águas-fortes,
óleos, através dos tempos; tema também
trazido desde as ruínas de Pompéia e Roma, atravessando
os séculos , passando pelos mestres escultores como Bernini,
e óleos de Veronesse, Rubens, Tiepolo, Fragonard, Van
Dyck, até aos contemporâneos Saint –Piens,
Di Canossa, Bourdelle, Salvador Dali (deste, “Daphne II”
, e “Três mulheres”).
Nos
quadros de Ladjane, a temática universal impregna-se
de uma vitalidade interpretativa surpreendente, muito particular,
onde “Quatro Cabeças”, “Um Par de seres”
e “Sete Mulheres”, num colorido rico em nuances,
conduzem tradução claro-escura, que emerge em
atmosfera supra-realista. A intensidade dos detalhes cria efeitos
diferenciados, próprios e singulares. Essa série
nunca foi exposta. Ladjane guardou-a de si para si mesma; e
falava-me então das cores que amava, e que, segundo ela,
“a traíam e invadiam o seu “eu oceânico”:
“As cores me dominam”, dizia, “o preto e branco
, os domino”; por isso, apesar de gostar tanto delas,
eu prefira o preto e branco”...
Na
série, desenhada a bico de pena, em primorosa e originalíssima
execução, o trânsito gestacional de fantástica
metamorfose. Compõe-se de um tríptico, dois dípticos
e quatro individuais. Nas imagens, em amplexo abissal, aparatos
tecnológicos e a fecunda intimidade intra-uterina. Diante
do espectador, nos perfis, o humano em transformação:
os seres, únicos e em pares superpostos. Arcaicas, modernas,
impressionantes, majestosas, algo de divino há nessas
incríveis visões: imponentes, talvez “‘organosignóticas’”
(aproprio-me aqui de um dos termos adjetivantes da autora).
No interior dessas figuras, uma miríade de detalhes minuciosos,
microscopicamente compostos: são esses seres riquíssimos
e misteriosos que invocam algo impossível de dizer, intimações
a penetrar naquela galáxia... o universo biopaisagístico.
Paralelamente, evolui no pensamento da autora, a sua “Teoria
Intelorgânica”. Disse Ladjane, comentando o seu
trabalho:
Nos
meus desenhos a bico-de-pena, trabalhei ponto por ponto, a eles
dei unidade técnica, numa atmosfera cósmica, também
unitária.”/ “Era uma espécie de êxtase,
de conhecimento e de identificação com o Cosmos,
com o Universo.”/ “Era como se eu pudesse conhecer
as coisas em profundidade, era como se o mundo fosse de vidro,
transparente.”/ “É difícil falar,
porque hoje sou outra, uma outra pessoa, eu passo por vários
processos de transformação: nunca sou eu mesma
por muito tempo.”/ “É a minha busca pelo
vir-a-ser que a série Biopaisagem representa: uma transformação
para a permanência unitária cognoscente, a transformação
da natureza em conhecimento.”/ “Em vez do Homem
vir de Deus, Deus é que viria do Homem, pois Deus seria
o final da matéria cognoscente.” / “O homem
absorveria toda a paisagem, ampliado em direção
à perfeição e ao conhecimento máximo,
transformando-se em Deus, que é a síntese da matéria
universal” / “Esta série evoca uma unidade
total, não topológica, onde cada trabalho é
a evolução do meu pensamento intelorgânico.”
Talvez
pelo significado que a série teve para sua autora, a
Biopaisagem tenha passado tanto tempo sem ser vista por nenhuma
pessoa...Em Outubro de 1977, num curso sobre Filosofia da Arte,
promovido pela profa. Maria do Carmo Tavares de Miranda, no
centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFPE, a série
foi exposta pela primeira vez com objetivo de debate filosófico.
No Jornal do Commercio, de 06 /novembro/ 77, no suplemento dominical,
aparece uma reportagem sobre o evento, assim como no suplemento
literário do Jornal Universitário, órgão
informativo da UFPE, de maio de 1978, sob o título: “Curso
aborda relações da Arte com a Filosofia”.
Ao público em geral é apresentada numa coletiva
do Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco, em 1978.
A elaboração complexa desses trabalhos, riquíssimos
em detalhes e efeitos claro-escuros de alto impacto dramático,
sintetizam as concepções filosóficas da
autora como um sistema auto-organizador na obra. LADJANE COMENTOU
SOBRE A EXECUÇÃO DESSES TRABALHOS:
AS
IDÉIAS, OS PENSAMENTOS FLUÍAM, MAS CONFORME EU
IA FAZENDO, ME DOMINAVA ALGO QUE EU NÃO CONTROLAVA. EU
IA COMPONDO, APENAS. CRIANDO, IA SAINDO.
Um
trabalho magistral, de uma grande artista. Mulher arrojada,
que viveu um futuro, que hoje se faz presente em eterna vanguarda.
Ladjane realmente ficou nos seus quadros, como ela declarou
na mesma entrevista que citei, logo no começo, publicada
no “Jornal Pequeno”. Naquela edição
histórica de 14 de Agosto de 48, em seu número
183, disse ela então:
“Começo
a sentir em meus quadros a impressão de que ficarei neles;
o artista só se liberta quando fica em sua obra.”
E
AQUI, NESTE MOMENTO, PERMITO-ME LER UM POEMA DE SUA AUTORIA,
QUE SAIU PUBLICADO NO JORNAL DO COMMERCIO DE 01/FEV./1976:
“QUE
EU SEJA HUMILDE”
I
POSSO ACEITAR
O SILÊNCIO
ONTOLÓGICO
DAS COISAS
MAS NÃO POSSO PRESCINDIR
DO MÁGICO ARAUTO DO TEMPO
VOZ-SEMENTE
QUE FAZ GERMINAR
CIRCUNSTANTE
A MAGNA E PROFUNDA EXISTÊNCIA PLURAL.
II
POSSO
ACEITAR
AS MEIAS VERDADES ETERNAS
(MISTÉRIOS-O VERBO
- O NÚMERO)
DA MESMA MANEIRA QUE ACEITO
O IMPOSSÍVEL
O NADA
O PERFEITO
O NÃO-SER
JAMAIS MORTAL
NÃO-SEMENTE.
III
POSSO
ACEITAR
A RAZÃO DO PENSAR IMANENTE
E A IDÉIA, EU ACEITO
EM PROJEÇÃO TRANSCENDENTE
QUAL MÍSTICA ESSÊNCIA FINAL DO SILÊNCIO
(DEUS-MORTE).
IV
MAS
QUERO É O SISTEMA
HERACLITIANO
DO TEMPO
O DEVIR CRIADOR
O DEVIR PERMANENTE
(SÍNTESE PASSADO-PRESENTE-FUTURO)
SEMENTEIRA VITAL
ORAÇÃO CONSCIENTE.
Ladjane vive: viva sempre estará no precioso legado de
sua arte. A ela o nosso aplauso.
Viva Ladjane, a sua eternidade. Viva, Ladjane!
Sonia Maria Sarmento de Freitas, 31/05/2005