Quando
eu era pequena e olhava para o meu avô, ele não
me parecia absolutamente, fantástico. Não tanto
antes quanto depois que essa idéia de fantasticidade
se encasquetou na minha cabeça.
Ele era estranho. Sim, o que tem isso ? Eu sabia o que era ser
estranho ?
Era soturno, mal humorado em sua situação de novo-pobre.
Pois sim, e o que tinha isso ? Eu distinguia valores financeiros
? Se havia duas palavras que nada me dissessem essas eram: “pobre
e rico”.
E se havia coisas que nem ao menos existiam essas coisas eram
as classes sociais. Chegassem a mim e dissessem: - Aquele safado
daquele varredor de rua”.
Pois sim, e daí ? Era possível que o “safado”
me impressionasse muito mais – e “safado”não
distingue classe – do que o pretendido insulto de “varredor
de rua”.
Era por isso que meu avô não me parecia fantástico,
absolutamente em nada. Olhava para ele muito calado dentro de
sua moldura de novo pobre – moldura também deslustrada
– e não me dizia nem fazia coisa alguma do fantástico.
Talvez porque eu tinha os olhos vagos, a cabeça grande
para o corpo e o corpo mole dentro das mãos dos outros.
Mas nem eu também era fantástica por ter cabeça
grande senão na medida em que o são todas as crianças
recém-nascidas.
E era por isso que eu não achava que meu avô fosse
fantástico e nem mesmo sabia que a palavra existia. Mas
a verdade é que ele era fantástico e rabugento.
E o pessoal na cidade se encarregava de propagar o que ele fizesse
e dissesse, e, possivelmente, o que nem fizesse e nem dissesse.
Um dia ele chamou minha avó e disse:
- Ô Nana, traz aí o martelo e a caixa de
pregos.
Minha avó lhos entregou sem perguntar para que os queria,
como teria perguntado qualquer mulher que não fosse ela.
Mas o povo se pôs a dizer, antes mesmo que ele batesse
o primeiro prego:
- É hoje ! Vai fazer o caixão.
E era certo. Só então, depois que todos já
haviam falado e tornado a falar foi que ele disse:
- Vou fazer minha arca, Nana, recebi aviso.
O rosto de minha avó quase dissolveu de ternura e compaixão.
Tremeu como os pudins que ela fazia, mas não disse nada.
Chorou em silêncio e longe da presença do marido
sentiu que o céu talvez não fosse perto.
Quase todos os processos utilizados por Utnapstim e por Noé
no feitio de usa raça ele usou recitando em voz alta:
- “Junte madeira, com tantos côvados de
largura por tantos de altura e faça o seu caixão.
Forre-o bem por dentro, fazendo-o alcochoado para ser confortável
durante o dilúvio que Eu vou mandar sobre você.
Quando o dilúvio passar sua arca já não
terá mais préstimos, nem seu corpo. Tenha cuidado
para por quatro alças pelo lado de fora e um travesseiro
para a cabeça pelo lado de dentro. Faça-o todo
negro e de veludo. Pode acrescentar-lhes enfeites prateados
sobre o veludo, inclusive cabeças de anjos gorduchos,
festões e tudo o que lhe der na cabeça que também
isso perderá o seu valor quando o dilúvio houver
passado. Acrescente-lhe uma cruz para que se pense que você
levou consigo as últimas atribuições e
não as deixou para ninguém como uma herança
incômoda. Faça de tudo de modo combinar com os
enfeites da Igreja para onde o mandarei em breve estágio.
Pronto o caixão, não se esqueça de entrar
nele e se manter decentemente tranquilo, imóvel e sem
fazer caretas ou distorções musculares, nem revirar
os olhos. Cruze as mãos sobre o peito, puxe a tampa sobre
você e o dilúvio o apanhará e o conduzirá
para a minha eternidade”.
Era doloroso para a minha avó escutar aquelas palavras
acompanhadas pelas batidas do martelo, mas já conhecidas
do marido há quarenta anos consecutivos e simplesmente
pensava: "Meu pobre velho”.
E suas mãos pareciam nadar dentro de rios de lágrimas
enquanto amassava a goma para os bolos que teria de fazer por
amor ao seu ofício.
Todo o dia ele esteve ocupado, todo o dia recitou suas orações
no mesmo gênero.
Então, de repente, minha avó, escutou que ele
cantava. Era uma voz estranha, dolorosa, muito baixa e trêmula.
E ela retornou ao seu pensamento favorito: Oh, meu Deus,
meu pobre velho”.
II
Dez
dias depois o caixão ainda estava no mesmo lugar e meu
avô o rondava meio fascinado recitando orações
estranhas e excitando a imaginação do povo que
mantinha suas antenas de pé para captar as mais insignificantes
notícias sobre os feitos.
Chamaram um padre dizendo: “Ele precisa”,
e minha avó, protestando, reclamou: “Não
é tempo ainda, ele saberá”.
E então começaram a pensar que ele havia enfeitiçado
minha avó e ninguém o percebera. Puseram as mãos
na cabeça e se lastimaram de terem sido enganados durante
tanto tempo e se sentiram como anjos.
Eram todos tão bons, tão prestativos, minha avó
e meu avô – monstros ! – não sabiam
sequer reconhecer.
“Vamos arrastar o padre aqui de qualquer maneira”.
O padre olhou aquilo, fez o sinal da cruz e começou:-
“Meu filho – e meu avô era
mais velho do que ele – aceite resignado o que
Deus lhe enviar.
É um pecado revoltar-se contra a vontade d’Ele.
Estamos na terra para isso mesmo – apontou o
caixão – e não vale a pena tentar
fugir dos desígnios de Deus. Aceite a morte como aceitaria
um presente inestimável e tudo parecerá mais fácil...
Meu avô sem se dignar olhá-lo falou com inesperada
mansidão:
- Ô Nana, que está fazendo esse urubu aqui
?
- Credo em cruz! – gritaram horrorizados.
Retiraram-se para as suas casas para gozarem a liberdades de
comentarem com mais detalhe o fato.
– “’É um herege ! O que ele
fez !...
Depois disso o caixão desapareceu da sala e apareceu
no sótão. Ali ninguém o via e assim o esqueceram.
Até mesmo minha avó deslembrou-se dele e continuou
fazendo seus bolos de estimação.
As crianças os adoravam. Esse inconsciente elogio tocava
o seu coração como toca o coração
de um artista ver o povo admirar a sua obra e desejar tê-la.
Meu avô ia sempre para a sede de sua banda preferida,
tocava o saxofone, ou fazia que o tocava. Não era bom
músico, embora o desejasse ardentemente.
Já ninguém pensava mais no incidente do caixão
acreditando mesmo que ele fora vendido, ou destruído,
ou sabiam lá o que !
Meu avô passou a frequentar com mais assiduidade a sede
da banda musical mantendo os olhos vagos, distantes e vez por
outra murmurava qualquer coisa como:
- “Minha grande arca ! quando chegar meu dilúvio...”
Mas como àquele tempo havia uma arca em cada casa, isto
é, um baú grande incrustado de percevejos ornamentais
de metal, ninguém se preocupou de averiguar o assunto.
Todavia, minha avó, achava que meu avô estava cada
vez mais casmurro e distante e pensando nele meneava a cabeça
e falava sua frase ternamente: “Pobre do meu velho”.
III
Seis
meses, um ano e as antenas do povo não tiveram mais o
que captar em relação à arca do meu avô.
Mas, de quando em vez ele subia ao sótão, entrava
no caixão, experimentando-o, tentando sentir a sensação
da morte sobre seus braços e pernas sobre seu coração
já seriamente abalado.
Quando minha avó não o via dentro de casa olhava
para cima, como se fosse para o céu – o sótão
– e balançava a cabeça desaprovativamente
sem contudo ousar repreendê-lo.
Ele mal falava, talvez treinando, consciencioso para o grande
silêncio que lhe parecia muito próximo.
Detestava qualquer ruído, especialmente se fosse feito
pelos outros. Mas nada o deixava tão irritado quanto
ouvir alguém assobiar.
Um dia ao voltar da sede da banda de música, já
de longe estava ouvindo uma coisa inacreditável! Sim,
alguém estava assobiando dentro da sua casa.
Entrou, olhou o sujeito trapado numa escada pincelando as paredes
num ritmo lento de valsa vienense, mediu-o de alto abaixo e
passou bufando.
Lá dentro chamou minha avó:
- Ô Nana, bota esse apanhador de capim para fora.
Manda ele embora.
- Mas meu velho, ele está caiando a casa.
- Nana ! Não ouviu o que eu disse ?
– Usou sua melhor ênfase.
Desde então a casa permaneceu metade caiada metade não,
o que intrigava a gente da cidade, sempre pronta a cuidar do
que não lhe dizia respeito.
Aborrecido com o incidente do caiador, meu avô sentiu
à noite necessidade de recorrer à sua arca para
apaziguar-se consigo próprio e com os seus “semelhantes”.
Subiu vagarosamente as escadas para não cansar-se demasiado,
levando na mão um candeeiro, porque no sótão
não tinha luz.
As sombras dançavam cada vez mais que a luz do candeeiro
vacilava. Galgado o último degrau olhou enternecido para
o seu velho companheiro, aquele que seria também o último
e seu coração quase lhe saltou da boca na disparada,
sufocando-o.
Arregalou os olhos mas dominando-se, convenceu-se que não
acreditava em espíritos e se aproximou, resoluto.
A tampa do caixão estremecia e um ruído surdo
vinha lá de dentro. Lembrou-se de ter deixado o caixão
aberto da última vez e sabendo que ninguém subia
ali, estremeceu.
Voltou a dominar-se. Chegou mais perto e deu um salto, sem querer,
quando um angustiado “miau !” saiu de dentro, arrepiando-lhes
os cabelos.
Súbito ele ergueu a tampa do caixão e o gato preto
da minha avó saiu louco de medo, saltando pelas pernas
do meu avô que ficaram a tremer a despeito do seu pretendido
autodomínio: “Ah, miserável, estragando
minha arca ! Não recebi ordens de levar animais”.
Espanando o caixão para tirar os pêlos e as possíveis
pulgas, deitou-se dentro e ficou pensando até cansar-se
e adormecer.
IV
Quando souberam eu meu avô havia morrido, já dentro
do caixão, lamentaram que minha avó insistisse
para vesti-lo com a farda da Guarda Nacional porque assim –diziam
- não valeu a pena ele ter morrido ali dentro uma vez
que sempre ia dar trabalho. Até mais: retirá-lo
e pô-lo novamente lá.
Antes ele tivesse morrido mesmo na cama. Não daria trabalho
descer com ele e o caixão, as escadas do sótão.
Falavam sem sequer respeitar a dor da minha avó, talvez
fazendo-o de propósito para castigá-la por ter
aguentado um sujeito tão esquisito e tão fantástico
durante tantos anos sem o abandonar.
Mas minha avó não se alterava com isso.
Apenas esqueceu seus bolos e seus doces àquele dia, -
só por alguns momentos, - porque depois vendo o marido
aparameotado com a farada da Guarda Nacional, um riso beatífico
assomou-lhe aos lábios e ela saiu de mansinho para a
cozinha onde apanhou os melhores e colocou-os nas mãos
do meu avô, falando com simplicidade.
- É para você não se esquecer do
gosto, meu velho. A viagem vai se longa. Enquanto eu não
chego lá você vá se divertindo com esses.
E quando o povo, chegando via o caixão do meu avô
cheio de bolos e doces, em lugar de flores dizia, meneando a
cabeça – “Coitada da velha !”.