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Você está em: Produção Literária


UM GESTO ANCESTRAL
Ladjane Bandeira
Publicado no Jornal do Commércio em 19 de novermbro de 1987

Ilustração de Ladjane

Quando eu era pequena e olhava para o meu avô, ele não me parecia absolutamente, fantástico. Não tanto antes quanto depois que essa idéia de fantasticidade se encasquetou na minha cabeça.

Ele era estranho. Sim, o que tem isso ? Eu sabia o que era ser estranho ?

Era soturno, mal humorado em sua situação de novo-pobre. Pois sim, e o que tinha isso ? Eu distinguia valores financeiros ? Se havia duas palavras que nada me dissessem essas eram: “pobre e rico”.
E se havia coisas que nem ao menos existiam essas coisas eram as classes sociais. Chegassem a mim e dissessem: - Aquele safado daquele varredor de rua”.

Pois sim, e daí ? Era possível que o “safado” me impressionasse muito mais – e “safado”não distingue classe – do que o pretendido insulto de “varredor de rua”.

Era por isso que meu avô não me parecia fantástico, absolutamente em nada. Olhava para ele muito calado dentro de sua moldura de novo pobre – moldura também deslustrada – e não me dizia nem fazia coisa alguma do fantástico. Talvez porque eu tinha os olhos vagos, a cabeça grande para o corpo e o corpo mole dentro das mãos dos outros. Mas nem eu também era fantástica por ter cabeça grande senão na medida em que o são todas as crianças recém-nascidas.

E era por isso que eu não achava que meu avô fosse fantástico e nem mesmo sabia que a palavra existia. Mas a verdade é que ele era fantástico e rabugento. E o pessoal na cidade se encarregava de propagar o que ele fizesse e dissesse, e, possivelmente, o que nem fizesse e nem dissesse.

Um dia ele chamou minha avó e disse:

- Ô Nana, traz aí o martelo e a caixa de pregos.

Minha avó lhos entregou sem perguntar para que os queria, como teria perguntado qualquer mulher que não fosse ela. Mas o povo se pôs a dizer, antes mesmo que ele batesse o primeiro prego:

- É hoje ! Vai fazer o caixão.

E era certo. Só então, depois que todos já haviam falado e tornado a falar foi que ele disse:

- Vou fazer minha arca, Nana, recebi aviso.

O rosto de minha avó quase dissolveu de ternura e compaixão. Tremeu como os pudins que ela fazia, mas não disse nada. Chorou em silêncio e longe da presença do marido sentiu que o céu talvez não fosse perto.

Quase todos os processos utilizados por Utnapstim e por Noé no feitio de usa raça ele usou recitando em voz alta:

- “Junte madeira, com tantos côvados de largura por tantos de altura e faça o seu caixão. Forre-o bem por dentro, fazendo-o alcochoado para ser confortável durante o dilúvio que Eu vou mandar sobre você. Quando o dilúvio passar sua arca já não terá mais préstimos, nem seu corpo. Tenha cuidado para por quatro alças pelo lado de fora e um travesseiro para a cabeça pelo lado de dentro. Faça-o todo negro e de veludo. Pode acrescentar-lhes enfeites prateados sobre o veludo, inclusive cabeças de anjos gorduchos, festões e tudo o que lhe der na cabeça que também isso perderá o seu valor quando o dilúvio houver passado. Acrescente-lhe uma cruz para que se pense que você levou consigo as últimas atribuições e não as deixou para ninguém como uma herança incômoda. Faça de tudo de modo combinar com os enfeites da Igreja para onde o mandarei em breve estágio.
Pronto o caixão, não se esqueça de entrar nele e se manter decentemente tranquilo, imóvel e sem fazer caretas ou distorções musculares, nem revirar os olhos. Cruze as mãos sobre o peito, puxe a tampa sobre você e o dilúvio o apanhará e o conduzirá para a minha eternidade”
.

Era doloroso para a minha avó escutar aquelas palavras acompanhadas pelas batidas do martelo, mas já conhecidas do marido há quarenta anos consecutivos e simplesmente pensava: "Meu pobre velho”.

E suas mãos pareciam nadar dentro de rios de lágrimas enquanto amassava a goma para os bolos que teria de fazer por amor ao seu ofício.

Todo o dia ele esteve ocupado, todo o dia recitou suas orações no mesmo gênero.

Então, de repente, minha avó, escutou que ele cantava. Era uma voz estranha, dolorosa, muito baixa e trêmula. E ela retornou ao seu pensamento favorito: Oh, meu Deus, meu pobre velho”.

II

Dez dias depois o caixão ainda estava no mesmo lugar e meu avô o rondava meio fascinado recitando orações estranhas e excitando a imaginação do povo que mantinha suas antenas de pé para captar as mais insignificantes notícias sobre os feitos.

Chamaram um padre dizendo: “Ele precisa”, e minha avó, protestando, reclamou: “Não é tempo ainda, ele saberá”.

E então começaram a pensar que ele havia enfeitiçado minha avó e ninguém o percebera. Puseram as mãos na cabeça e se lastimaram de terem sido enganados durante tanto tempo e se sentiram como anjos.

Eram todos tão bons, tão prestativos, minha avó e meu avô – monstros ! – não sabiam sequer reconhecer.

Vamos arrastar o padre aqui de qualquer maneira”.

O padre olhou aquilo, fez o sinal da cruz e começou:- “Meu filho – e meu avô era mais velho do que ele – aceite resignado o que Deus lhe enviar.

É um pecado revoltar-se contra a vontade d’Ele. Estamos na terra para isso mesmo – apontou o caixão – e não vale a pena tentar fugir dos desígnios de Deus. Aceite a morte como aceitaria um presente inestimável e tudo parecerá mais fácil...

Meu avô sem se dignar olhá-lo falou com inesperada mansidão:

- Ô Nana, que está fazendo esse urubu aqui ?

- Credo em cruz! – gritaram horrorizados. Retiraram-se para as suas casas para gozarem a liberdades de comentarem com mais detalhe o fato.

– “’É um herege ! O que ele fez !...

Depois disso o caixão desapareceu da sala e apareceu no sótão. Ali ninguém o via e assim o esqueceram. Até mesmo minha avó deslembrou-se dele e continuou fazendo seus bolos de estimação.

As crianças os adoravam. Esse inconsciente elogio tocava o seu coração como toca o coração de um artista ver o povo admirar a sua obra e desejar tê-la.

Meu avô ia sempre para a sede de sua banda preferida, tocava o saxofone, ou fazia que o tocava. Não era bom músico, embora o desejasse ardentemente.

Já ninguém pensava mais no incidente do caixão acreditando mesmo que ele fora vendido, ou destruído, ou sabiam lá o que !

Meu avô passou a frequentar com mais assiduidade a sede da banda musical mantendo os olhos vagos, distantes e vez por outra murmurava qualquer coisa como:

- “Minha grande arca ! quando chegar meu dilúvio...”

Mas como àquele tempo havia uma arca em cada casa, isto é, um baú grande incrustado de percevejos ornamentais de metal, ninguém se preocupou de averiguar o assunto. Todavia, minha avó, achava que meu avô estava cada vez mais casmurro e distante e pensando nele meneava a cabeça e falava sua frase ternamente: “Pobre do meu velho”.

III

Seis meses, um ano e as antenas do povo não tiveram mais o que captar em relação à arca do meu avô. Mas, de quando em vez ele subia ao sótão, entrava no caixão, experimentando-o, tentando sentir a sensação da morte sobre seus braços e pernas sobre seu coração já seriamente abalado.

Quando minha avó não o via dentro de casa olhava para cima, como se fosse para o céu – o sótão – e balançava a cabeça desaprovativamente sem contudo ousar repreendê-lo.

Ele mal falava, talvez treinando, consciencioso para o grande silêncio que lhe parecia muito próximo.

Detestava qualquer ruído, especialmente se fosse feito pelos outros. Mas nada o deixava tão irritado quanto ouvir alguém assobiar.

Um dia ao voltar da sede da banda de música, já de longe estava ouvindo uma coisa inacreditável! Sim, alguém estava assobiando dentro da sua casa.

Entrou, olhou o sujeito trapado numa escada pincelando as paredes num ritmo lento de valsa vienense, mediu-o de alto abaixo e passou bufando.

Lá dentro chamou minha avó:

- Ô Nana, bota esse apanhador de capim para fora. Manda ele embora.

- Mas meu velho, ele está caiando a casa.

- Nana ! Não ouviu o que eu disse ? – Usou sua melhor ênfase.

Desde então a casa permaneceu metade caiada metade não, o que intrigava a gente da cidade, sempre pronta a cuidar do que não lhe dizia respeito.

Aborrecido com o incidente do caiador, meu avô sentiu à noite necessidade de recorrer à sua arca para apaziguar-se consigo próprio e com os seus “semelhantes”.

Subiu vagarosamente as escadas para não cansar-se demasiado, levando na mão um candeeiro, porque no sótão não tinha luz.

As sombras dançavam cada vez mais que a luz do candeeiro vacilava. Galgado o último degrau olhou enternecido para o seu velho companheiro, aquele que seria também o último e seu coração quase lhe saltou da boca na disparada, sufocando-o.

Arregalou os olhos mas dominando-se, convenceu-se que não acreditava em espíritos e se aproximou, resoluto.

A tampa do caixão estremecia e um ruído surdo vinha lá de dentro. Lembrou-se de ter deixado o caixão aberto da última vez e sabendo que ninguém subia ali, estremeceu.

Voltou a dominar-se. Chegou mais perto e deu um salto, sem querer, quando um angustiado “miau !” saiu de dentro, arrepiando-lhes os cabelos.

Súbito ele ergueu a tampa do caixão e o gato preto da minha avó saiu louco de medo, saltando pelas pernas do meu avô que ficaram a tremer a despeito do seu pretendido autodomínio: “Ah, miserável, estragando minha arca ! Não recebi ordens de levar animais”.

Espanando o caixão para tirar os pêlos e as possíveis pulgas, deitou-se dentro e ficou pensando até cansar-se e adormecer.

IV

Quando souberam eu meu avô havia morrido, já dentro do caixão, lamentaram que minha avó insistisse para vesti-lo com a farda da Guarda Nacional porque assim –diziam - não valeu a pena ele ter morrido ali dentro uma vez que sempre ia dar trabalho. Até mais: retirá-lo e pô-lo novamente lá.

Antes ele tivesse morrido mesmo na cama. Não daria trabalho descer com ele e o caixão, as escadas do sótão.

Falavam sem sequer respeitar a dor da minha avó, talvez fazendo-o de propósito para castigá-la por ter aguentado um sujeito tão esquisito e tão fantástico durante tantos anos sem o abandonar.

Mas minha avó não se alterava com isso.

Apenas esqueceu seus bolos e seus doces àquele dia, - só por alguns momentos, - porque depois vendo o marido aparameotado com a farada da Guarda Nacional, um riso beatífico assomou-lhe aos lábios e ela saiu de mansinho para a cozinha onde apanhou os melhores e colocou-os nas mãos do meu avô, falando com simplicidade.

- É para você não se esquecer do gosto, meu velho. A viagem vai se longa. Enquanto eu não chego lá você vá se divertindo com esses.

E quando o povo, chegando via o caixão do meu avô cheio de bolos e doces, em lugar de flores dizia, meneando a cabeça – “Coitada da velha !”.


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