Trêmulo
e desesperado Bráulio se compõe.
Do crepúsculo em volta e do crepúsculo em si,
Bráulio todavia Bráulio,
reproduzido no filho, que Ana lhe plasmou em madrugada
moral, é
arquitetura perturbada.
De seus finos braços - pêlos emaranhados e sensíveis
- o menino,
caniço frágil, brota na comunhão da dor
e da esperança.
No mistério do amor tenaz que os une, a vida grita e
grita ainda.
Ambos, pai e filho, formas contraídas, dissolvidos num
mesmo e
retalhado medo, ambos em um, amam e amam sempre.
II
Agonizante,
Zeca, pequeno e ininterrupto no muito ser-por-si-e-pelos-outros-muitos,
não tem nem mais sorrisos nem mais lágrimas.
Voz, um dia, sim, mas a perdeu.
Peso um dia, sim, mas não lhe perdoou o mundo.
Pernas, um dia, sim, pequenas estruturas de pequenas liberdades
retomadas, jazem fixas.
Zeca todavia Zeca, ruína prematura e ignorada, quer gemer
e quer
chorar, mas é boneco de papel torcido e ressecado.
III
Como
fóssil inútil, Bráulio, rígido pelos
sulcos dos seus olhos, pelas
veias do seu pensamento, pelos veios do som primordial, no grito
que
não sai, Bráulio petrificado e morto de mil mortes
já lavadas pelo
tempo desdobrado em outras carnes, outros sangues e outros ossos,
aperta o filho contra o peito e chora.
Bráulio, homem enrijecido pelo desamor de quantos dão
amor a
tantos que não ele, chora.
E em suas lágrimas Ana é embarcação
sem rumo.
IV
Mas,
vertical, Ana todavia Ana, já se impõe: “Vamos!”.
Ela e ambos, ela e os três, ela e os quatro, se vão
em luta agreste,
inglória, em luta persistente.
E todos partem, e partem simplesmente.
Bráulio - Zeca ao peito - é matulão que
oscila ao lombo morno
do cavalo Bonzo, o velho Bonzo triste, suja cor resignada sobre
pernas carcomidas.
Um homem e seu menino, um homem e seu cavalo.
Um ex-filho-pai, sem fim e sem princípio no seu muito-ser-dos-outros-tantos,
pelo espaço e pelo tempo, se faz na estrada levando uma
mulher sofrida.
V
Ana
todavia Ana, seguindo Bonzo e o seu destino, segue Bráulio
e o
seu menino.
No seu caminhar de pés descalços, cava a terra
com seus passos
lentos, desgastados, que vibraram um dia de esperança,
e arranca
brotos raros de uma plantação de sonhos, de uma
plantação de espectros vãos,
dourados, para a fome do seu rumo ignorado.
E pensa:
O meu pai Elias, que regou a terra com o suor teimoso do seu
rosto, que estrumou as plantas com a carne serenada do seu corpo,
que deu cálcio ao chão com o branco dos seus ossos,
o meu pai Elias,
foi um forte.
E Zeno, o meu irmão, um forte.
E mãe, a minha mãe Maria, sempre Maria desnutrida
e prenhe?
Forte.
Fortes na fraqueza.
Fortes exterminados pela fortaleza.
VI
Fermentam
imagens.
Emergem o tempo e as circunstâncias.
Fere o espaço a inquietação da nau do sonho,
a nau dos degredados
da certeza.
Aos olhos de Ana, esfomeados de justiça e de horizonte,
o pássaro
agressivo nau dos deserdados, retezou seu vôo e absorveu
o dia.
VII
Seguem,
e se seguem estuporados.
Mas, Bonzo, quase não-mais-cavalo, estertora apavorado.
Fere o nascer da noite com o seu morrer com o dia.
Ele, que viera no seu lento ignorar, lentamente arreia já
concluso.
Seu corpo, seu bambo corpo descarnado e só, por meio
tempo ainda
negará o nada construindo-se arquitetura sobre a áspera
terra sem
soluços.
VIII
Agora,
Bráulio, árido e resoluto, é árvore
enristada e acusadora
contra um céu sem sol.
Da sua fúria ele se nutre.
Da sua fúria ele se anima e se consome.
Da sua fúria se enegrece com a noite e multiplica Bráulios.
Mas, Ana todavia Ana, agora e sempre, mulher-criança,
pondo a
mão sobre seu ombro tenso mais uma vez se impõe:
“Venceremos esta noite. Vamos”.
Arrastando-se como espectros deslustrados, sem fim e sem princípio,
são engolidos pelas trevas, à espera de que o
sol venha a nascer.